terça-feira, 15 de setembro de 2009

Arcos-íris e propriedades de multiplicação

“Esse sonho me acontecia muitas vezes, mas não com tantos miúdos a correrem pela PraiaDoBispo sem os fios dos papagaios a prenderem uns nos outros – como os nós malucos na rede do camarada VelhoPescador –, nem tanto vento eu nunca tinha visto assim a fazer calemas no mar dali tão calmo, só que ao sonhar eu não sabia que era um sonho, a minha respiração estava depressada de eu ficar aflito a ver o largo da bomba de gasolina com uma multidão de crianças que eu queria saber quem eram, estavam os da PraiaDoBispo e também os do BairroAzul, outros da escola e até alguns adultos, a TiaAdelaide a rir, o camarada VendedorDeGasolina a correr com um papagaio vermelho e amarelo, até o TioRui que era escritor passava numa bicicleta que tinha uns bigodes desenhados e ele fazia as duas coisas, conduzia a bina e dominava o papagaio – que bicicleta bonita! –, o SenhorTuarles tinha uma caneca de cerveja na mão e com a outra fazia o papagaio dar reviengas de esquindiva no vento, até o CamaradaBotardov ria e corria, “dona Nhé, papagái leva notícia na tão-longe”, mas o que nunca mesmo me tinha acontecido naquele sonho de carnaval e risos também, era ver tantas cores movimentadas numa dança de ventos voados e o céu cheio de mil verdes, amarelos, laranjas e vermelhos com o azul por trás, o céu a imitar uns pássaros que fossem o corpo vivo disso que chamam arco-íris.
- Estavas a sonhar, filho?
- Ai, Avó, não me acordavas só, eu estava a sonhar bué de arcos-íris.
- Oh, meu querido – ela me limpou a cara – estavas com a respiração tão alterada, todo suado, tive medo que fosse uma crise de asma.
- Era uma asma colorida, Avó… O nosso céu da PraiaDoBispo com cores que eu nem sei te explicar.
- O mesmo sonho, então.
- Mas com “propriedades de multiplicação”, como dizem na minha escola.
- Tá na hora de acordar, de qualquer modo. Vens comigo ao cemitério?
- Sim. Vais falar com o AvôMbinha?
- Não dá para falar, filho. É só estar um bocadinho. Às vezes a pessoa vai ao cemitério para falar sozinha.
- O EspumaDoMar fala sozinho sem ir ao cemitério. (…)”
(*)


Livros assim, que me fazem viajar até uma Luanda longínqua, onde estão enterradas as raízes dos meus mais-velhos; livros cheios de histórias que a minha mamã sabe explicar porque também foram as histórias da infância dela; livros cheios de expressões saborosas e das quais me aproprio imediatamente; livros que me fazem querer ter sido uma criança assim, ou querer que os meus rebentos sejam crianças assim; livros que confirmam que aqui sou estrangeira (como a Ervilha costuma dizer); livros que confirmam que não tenho, de todo, idade para ter nem dezanove nem vinte anos, porque me identifico tanto com as palavras de um menino pequenino…


“Acho que as lembranças são cócegas invisíveis que ficam dentro das pessoas. Eu quando me lembro dessas coisas começo a rir sozinho até o 3,14 me perguntar se eu sou maluco de rir tantas vezes sozinho.

- É que eu fico a lembrar as coisas.
- Mas ainda não és mais-velho, não podes ter muita coisa para lembrar.
- É que já me contaram muitas coisas de antigamente. E eu fico a rir de coisas antigas, Pi.
- As coisas antigas não têm muita graça de rir.
- Depende, Pi. Depende.”
(*)

Livros como este que, mal são terminados, apetece ler tudo outra vez.



(*) excertos do romance AvóDezanove e o segredo do Soviético, de Ondjaki.

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