segunda-feira, 30 de junho de 2008

“De cada vez que a tremura desata o desejo (…)”

Viajei num barco a vapor de antigamente, com o cetim do chapéu balouçando ao vento, despreocupadamente. Senti, nesta minha face, o sabor salgado desse sopro longínquo que ninguém sabe de onde vem nem para onde vai; senti-o, reconfortando-me o peito, afagando-me o espírito com a sua mão salgadamente doce. Não olhei para os acenos que me largavam os dois transeuntes presentes naquela partida, nem sequer lhes acenei de volta. O sol beijava as minhas pálpebras tão insistentemente que tive mesmo de apreciar aquele instante como se nunca mais se voltasse a repetir (e será que voltaria?). Aquela insistência solarenga não era, de todo, agressiva. Era como quando uma criança pede atenção, puxando a orla do vestido ou da camisa, com o seu sorriso irremediavelmente convidativo convencendo mais que os seus inocentes e insistentes puxões. Era uma chamada solar quase infantil, ajudada não pelo sorriso que a caracterizava, mas pelas belas cores que o sol vestia quando se queria pôr; ficava ainda mais radiante no momento da despedida… sempre tão agridoce. A música das ondas rebentando no barco enchia os meus ouvidos, os meus poros, todo o meu ser que tentava a custo servir-se desse corrimão para não cair. Essa música que há tanto tempo não me aconchegava os tímpanos tocava agora, ruidosa, infindável, saborosamente infinita. As ondas não cessavam de entoar, a cinco vozes, as minhas odes predilectas: as delas mesmas. Iam cantando, sempre, para me protegerem o pensamento da consciência da dolorosa despedida, da dor provocada pelo corte assertivo da saudade, essa que nasce sempre em qualquer partida, até na de um barco a vapor de antigamente.

Viajei para fora desse barco, debrucei-me sobre o corrimão, caí nas cantadeiras ondas, movimentei-me em direcção à costa já longínqua, alcancei uma corda largada nesse porto tão grande, subi para terra, sã e salva por mim mesma
(julgava eu, egocentricamente ignorante), e abracei o ar que se respirava nesse lugar que não queria deixar. Dilacerei a dor da saudade, fi-la desvanecer toda num só instante. Tinha regressado. Apenas em pensamento, é certo. Apenas na minha fértil imaginação, claro está. Não teria, nunca, coragem suficiente para me entregar às ondas cantantes para não mais ter saudades mortíferas em mim.

(Seria?)

Ao som de:

1 comentário:

Anónimo disse...

Delicioso.
Ás vezes é assim, partimos para nos encontrarmos, para nos encontrarem.
"Iam cantando, sempre, para me protegerem o pensamento da consciência da dolorosa despedida, da dor provocada pelo corte assertivo da saudade, essa que nasce sempre em qualquer partida, até na de um barco a vapor de antigamente."(excelente!)

O melhor das saudades é mesmo quando se transformam em lembranças boas e nos fazem sorrir.

Ás vezes Ele pega na tua mão e brotam estas palavras tão bonitas.

Uma vénia**