quarta-feira, 30 de junho de 2010

Mezinha

Experimentar o próprio remédio pode ser catártico e assustador em simultâneo. Observar um pacote medicamentoso e rever-se nas prescrições, nas especificações, como se aquele mínimo pedaço de papel contasse a história de vida da maleita de que se padece.

Experimentar o próprio remédio pode, ocasionalmente, despertar uma negação exacerbada da necessidade de o tomar: “eu não preciso disto”, “eu não estou doente”, “isto é para os outros, esses tantos outros, não para mim”.

É quando a sensação de descontrolo se torna mais insuportável que o habitual, quando todo o conhecimento já demonstrou “por á mais bê” que é, deveras, crucial que se experimente do próprio remédio, que se prova o sabor agridoce de ser o sujeito de tratamento, de avaliação.

Experimentar o próprio remédio pode destapar factos ocultos. Como o facto de não se crer no remédio que se prescreve.

(que raio de médico és tu?)

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Foi aqui que eu nasci.

A manhã quente, como a promessa de um abafado dia, ocasionalmente cortada pela breve brisa que ainda se sente (o fresco ar do norte). O sol imperioso, implacável, doce, colorindo-me a pele de melanina. Um senhor bem vestido e desconhecido, lançando no ar um cumprimento agradável e muitos sorrisos abertos, a voz cheia de um delicioso sotaque a ecoar pelas escadas do prédio.

E ela, tão linda!, fazendo adeus da varanda, de sorriso franco e amor nos olhos, tão mamã, tão anciã.

“Pensa bem! Pensa com a cabeça, não penses com os pés!” – como pode alguém que me vê tão pouco me saber tão bem?

Eu só quero este povo, esta terra, este amor, todos os dias.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

(sem título) (5)

Agora é que se verão bandeiras em todas as janelas, que se ouvirá “A Portuguesa” em todas as bocas, vuvuzelas ainda mais incessantes, t-shirts, tops, cachecóis, (tudo!) com as cores deste pedaço de terra “à beira mar plantado”. É agora, pois foi agora que marcámos e nos impusemos. É sempre depois da vitória que somos portugueses. Apenas e só, infelizmente.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Notícias

"Todos os dias têm a sua história, um só minuto levaria anos a contar, o mínimo gesto, o descasque miudinho duma palavra, duma sílaba, dum som, para já não falar dos pensamentos, que é coisa de muito estofo, pensar no que se pensa, ou pensou, ou está pensando, e que pensamento é esse que pensa o outro pensamento, não acabaríamos nunca mais."


In Levantado do Chão, Ed. Caminho, 14.ª ed., p. 59 (fonte)

A história do dia de hoje é que José Saramago morreu.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

(enfim)

Serafim era um menino bonito a quem tudo corria como devia correr.
Fazia as coisas de todos os dias.
As suas acções eram iguais às de toda a gente.
As suas rotinas não fugiam a qualquer regra.
Tinha uma vida normal.

Não há muito mais a dizer acerca do Serafim.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Cinco vezes seis igual a trinta

Lembro-me de ser pequenina e chorar baba e ranho quando o meu pai me dizia: “nestes teus dias livres, escolhes uma hora para trabalhares nas tuas tabuadas”. Estas palavras eram, para mim, como chicotadas. Uma pessoa com sete anos de idade, com nenucos, primos, irmão, avós e tantas coisas para brincar (essas delícias que o Verão traz às crianças felizes), tinha de seleccionar uma hora do seu dia para se sentar e concentrar-se em dois vezes três e sete vezes cinco e nove vezes nove (essa era fácil, oitenta e um).

Eu não percebia nada do propósito daquilo! (sim, hoje já sei que o papá me estava a capacitar, a não deixar desvanecer o ritmo de trabalho ganho durante o ano escolar, a poupar-me tempo nos anos vindouros, quando a tabuada tão bem sabida me permitiria fazer qualquer cálculo super-depressa). Não percebia, e quando me entristecia profundamente, era no segredo dos meus cadernos. Eram aqueles quadradinhos azuis e brancos que me viam as lágrimas, o rosto desfigurado, o “pranto e o ranger de dentes”. Tinha o meu momento de revolta, seguido da fase de mentalização, que por sua vez precedia a embirração; só depois de tudo isto é que me decidia a fazer as ditas tabuadas.

O trabalho em si tomava uns vinte minutos do meu dia. O processo todo a que eu me sujeitava demorava (num dia bom) três horas. Foi o meu querido avô F., numas férias passadas em nossa casa, quem mo explicou pela primeira vez; foi o primeiro, para além dos cadernos aos quadradinhos, a conhecer-me a fúria contra “a hora das tabuadas”, e a revelar-me essa verdade universal: “quanto mais depressa cumprires as tuas tarefas, mais depressa vais brincar”. Mentiria se dissesse que, desde então, foi remédio santo. Mas até hoje, depois de muitas tabuadas e outras matérias que tais, durante a época de exames e na labuta para alcançar as metas a que me proponho, é este o pensamento que me empurra quando nada mais o faz.

“Quanto mais depressa cumprires as tuas tarefas mais depressa vais brincar.”

(“vais brincar”, “vais dormir”, “vais de férias”: são tudo sinónimos.)

Coração

Foi num dia de Sol (e dezassete anos depois) que encontrei a minha outra irmã. Nós reconhecemo-nos imediatamente, apesar de, primeiramente, termos trocado apenas um cordial aperto de mão. Esta irmã, que me sabe de cor por dentro e por fora, um dia resolveu contar-me. Contar a história do mundo em que eu vivo (só para clarificar).

Eu sei que se atreveu a passar muito pouco daquilo que cogita para as palavras escritas, mas não consigo evitar as lágrimas cada vez que leio esse poucochinho; é que ela conta-me tão bem!... Serei demasiado fácil, ou é a sua grande mestria que não coloca outra hipótese? Eis um breve (muito breve) excerto.

“Embora perfeito,
Foi pintado com uma árvore majestosa, à beira de um rio de águas translúcidas
de onde se conseguiam ver os peixes multicolores e as pedras de vários tamanhos
para lá serem deixadas tristezas.
Pollyanna sentava-se ali, lia o livro
escrevia-se num pergaminho, palavras de oração e
abria um pequeno espaço na terra para ali deixar as lágrimas.
Depois daquilo passeava-se e deixava o seu sorriso
e a sua melodia em cada canto.
As flores nunca a viram triste,
nem as árvores mais pequenas, cujas folhas eram notas
de muitas músicas
nem as borboletas que por ali pairavam
nem os ponteiros do relógio que insistiam que ela se apressasse nas suas
paragens.
Pollyanna era feliz,
mesmo quando estava triste.”


Espero que a minha irmã leia estas palavras e não se zangue (é que não lhe pedi a devida autorização…). Também espero que ela me visite, aqui no meu mundo, junto à árvore majestosa. Para desobedecermos aos ponteiros e partilharmos momentos em que, estando tristes, somos felizes.

terça-feira, 15 de junho de 2010

After hours

Depois de ter explorado T-O-D-A-S as capacidades da nova aplicação "design" do blogger, depois de ter rido, depois de ter reflectido, depois de ter feito nenhum, depois de me olhar ao espelho e ver as olheiras trinta vezes maiores que ontem (e pensar que há algo que necessita de ser feito quanto a esta carapaça-corpo-embrulho-exterior), depois de ter escrito, depois de ter apagado os escritos;
ainda não fui descansar.
que era o que devia ter feito assim que voltei de mais um dia de árduo trabalho.
Assusta-me antever o final deste penhasco de onde me lanço, sem explicações coerentes.

terça-feira, 8 de junho de 2010

Se uma espera incomoda muita gente, duas esperas incomodam muito mais...

Já é sabido que a menor ambição que tenho nesta existência é crescer. Porém, os anos e as experiências vão passando por mim, sem que possa evitá-los; cresço, e pelo caminho aproveito para aprender e apreender o que puder. E se há coisa que tenho constatado (com atroz regularidade, note-se) é que existem muitas pessoas com fobia à espera. Não só à designação mais corriqueira do termo (esperar pela sua vez, esperar que o semáforo mude de cor, esperar para pensar, esperar para falar), como também às várias esperas da sua própria vida e ainda, por incrível que pareça, fobia às esperas das vidas dos outros.

Que alguém se impaciente com a sua condição, com alguma situação que não apresenta resultados, com algum estado que não muda (apesar dos muitos esforços para que a alteração se dê), ainda compreendo; mesmo sabendo que o exercício da paciência é esse mesmo, confiar que o tempo de espera é só o necessário para que tudo ocorra no momento perfeito. Porém, verificar que essa mesma impaciência se espraia para os assuntos dos outros, para os resultados que não existem nas vidas dos outros, para as condições inalteradas há muitos anos numa vida que não é a sua… isso ainda me deixa estupefacta.

Queria apenas registar, não há espera que dure uma vida inteira, seja em nós, seja naqueles que nos rodeiam. A mudança só é tão mágica e impactante por ser inesperada e inequívoca. Assim, não há situações que precisem de ser forçadas, não há impaciência que resolva coisa nenhuma; nem há, sequer, controlo sobre a maioria das coisas sobre as quais cremos (e queremos) ter controlo.

Há sim, momentos pensados cuidadosamente, amorosamente, para tudo correr da maneira mais perfeita (é Ele que assim opera). E aos impacientes, com comichões e ganas vorazes de que tudo se precipite para ontem (que o tempo urge!), resta-lhes aprender a esperar. Resta-lhes aprender a saborear o tempo que vem antes de tudo mudar.

Porque é quando se confia que a vida se vira do avesso.