quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Esta madrugada escrevi assim (7)

A brutalidade áspera da verdade não é suficiente para me fazer parar de escrever pela madrugada fora. Não é, não foi. Eu só quero que seja. Só quero escrever que um dia o será.

Mas afinal, o “que será que será?”


“O que não tem certeza nem nunca terá
O que não tem juízo.”

No que a escrever pela madrugada concerne, às vezes “tenho medo do que será de mim”.

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Na carrinha branca...

Imagine-se este quadro: três amigos viajantes, em que um deles é brasileiro. No destino, acrescenta-se ao grupo um quarto amigo, marroquino. O brasileiro que ama Marrocos e o marroquino que suspira pelo Brasil tratam-se por “meu irmão” (mêrrmão, para ser mais exacta). Partilham o mesmo humor, gostam dos mesmos filmes, riem-se das mesmas tolices, e ouvem as mesmas canções.

Viajamos por Marrocos, os quatro, na (já muito massacrada) carrinha branca. O brasileiro pede ao marroquino para banda-sonorizar a viagem. O segundo liga o seu Ipod ao rádio da dita carrinha e sai-se com Adriana Calcanhoto.



Na janela correm as planícies aridamente belas dessa África onde agora passeamos. Brasileiro e marroquino confundem-se em suas nacionalidades e as risadas inundam o ar quente desse início de tarde. Os irmãos estão a cantar e a mistura dos sotaques faz cócegas nos ouvidos. Eu confundo-me também. Estou em Marrocos com dois brasileiros, estou no Brasil com dois marroquinos, ou estou num universo paralelo?

(pergunta descabida)

Estou em casa.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Histórias bonifácias

O meu amigo P. tem um talento nato: descortinar pessoas. Se algum dia tivesse de acontecer, o seu epíteto poderia ser mudado para Profiler sem quaisquer problemas, tal é a sua perícia. Às vezes penso que ele pensa que, quando enfatizo este seu traço, o estou a criticar. Não estou, como já se nota. Constato apenas.

O meu amigo P. crê que eu analiso tudo constantemente, como o acuso de fazer. Ele crê nisto com muita força, pensado que incorro numa falácia grandiosa quando lhe aponto tal comportamento. Ele não sabe, de todo, que o que mais me apraz não é analisar; é só olhar. Gosto tanto de os ver, àqueles que agora conheço mais fundo, saber como os seus risos rebolam desavergonhadamente, saber os seus jeitos, os maneirismos que lhes compõem as falas. Saber, de cor, o que mais lhes agrada, e também o inverso, como brilham os seus rostos entusiasmados e como agem quando o incómodo domina.

Só olhar, só para saber. (Só para poder gravar em mim.) Sem pretensões analíticas, sem objectivos catalogantes. Absorver tudo, apenas. E sorrir ao revê-los nos preâmbulos das minhas memórias, sorrir e saborear, revivendo tantas partilhas. O P. não sabe que é assim que eu sou mais feliz.

Um dia conto-lhe.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Apontamento (2)


Continua a correr, não pares – gritava a voz longínqua de um vento inanimado. Era uma força que vinha com lágrimas, eram lágrimas que não cessavam de acorrer aos olhos, de tempos a tempos. Era um grito distante e audível, um grito incessante; indubitável.

Parar era uma vontade que crescia insustentavelmente. As pernas, os abdominais, os pulmões pediam descanso, clamavam por uma pausa, mais e mais. Parar não era (não é) opção, sucumbir ao cansaço, não.

(Às vezes, quando essa força mascarada de ventania se abranda, cresce mais a vontade de desistir, de chorar apenas. De largar o corpo no tempo e deixar todas essas dores esvaírem-se em muitos soluços seguidos. Às vezes, quando o sorriso esmorece, não correr é mais tentador, mais fácil.)

Continua a correr, não pares – há uma meta para cortar lá à frente, há um alvo para atingir, há uma diferença para marcar. Mentalizar a respiração, regular o corpo para a sintonia da persistência. E sem olhar para trás, manter o ritmo; continuar a correr.









P.S. Fotografei esse pedaço de trilho (algures) em Águas Santas.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Arcos-íris e propriedades de multiplicação

“Esse sonho me acontecia muitas vezes, mas não com tantos miúdos a correrem pela PraiaDoBispo sem os fios dos papagaios a prenderem uns nos outros – como os nós malucos na rede do camarada VelhoPescador –, nem tanto vento eu nunca tinha visto assim a fazer calemas no mar dali tão calmo, só que ao sonhar eu não sabia que era um sonho, a minha respiração estava depressada de eu ficar aflito a ver o largo da bomba de gasolina com uma multidão de crianças que eu queria saber quem eram, estavam os da PraiaDoBispo e também os do BairroAzul, outros da escola e até alguns adultos, a TiaAdelaide a rir, o camarada VendedorDeGasolina a correr com um papagaio vermelho e amarelo, até o TioRui que era escritor passava numa bicicleta que tinha uns bigodes desenhados e ele fazia as duas coisas, conduzia a bina e dominava o papagaio – que bicicleta bonita! –, o SenhorTuarles tinha uma caneca de cerveja na mão e com a outra fazia o papagaio dar reviengas de esquindiva no vento, até o CamaradaBotardov ria e corria, “dona Nhé, papagái leva notícia na tão-longe”, mas o que nunca mesmo me tinha acontecido naquele sonho de carnaval e risos também, era ver tantas cores movimentadas numa dança de ventos voados e o céu cheio de mil verdes, amarelos, laranjas e vermelhos com o azul por trás, o céu a imitar uns pássaros que fossem o corpo vivo disso que chamam arco-íris.
- Estavas a sonhar, filho?
- Ai, Avó, não me acordavas só, eu estava a sonhar bué de arcos-íris.
- Oh, meu querido – ela me limpou a cara – estavas com a respiração tão alterada, todo suado, tive medo que fosse uma crise de asma.
- Era uma asma colorida, Avó… O nosso céu da PraiaDoBispo com cores que eu nem sei te explicar.
- O mesmo sonho, então.
- Mas com “propriedades de multiplicação”, como dizem na minha escola.
- Tá na hora de acordar, de qualquer modo. Vens comigo ao cemitério?
- Sim. Vais falar com o AvôMbinha?
- Não dá para falar, filho. É só estar um bocadinho. Às vezes a pessoa vai ao cemitério para falar sozinha.
- O EspumaDoMar fala sozinho sem ir ao cemitério. (…)”
(*)


Livros assim, que me fazem viajar até uma Luanda longínqua, onde estão enterradas as raízes dos meus mais-velhos; livros cheios de histórias que a minha mamã sabe explicar porque também foram as histórias da infância dela; livros cheios de expressões saborosas e das quais me aproprio imediatamente; livros que me fazem querer ter sido uma criança assim, ou querer que os meus rebentos sejam crianças assim; livros que confirmam que aqui sou estrangeira (como a Ervilha costuma dizer); livros que confirmam que não tenho, de todo, idade para ter nem dezanove nem vinte anos, porque me identifico tanto com as palavras de um menino pequenino…


“Acho que as lembranças são cócegas invisíveis que ficam dentro das pessoas. Eu quando me lembro dessas coisas começo a rir sozinho até o 3,14 me perguntar se eu sou maluco de rir tantas vezes sozinho.

- É que eu fico a lembrar as coisas.
- Mas ainda não és mais-velho, não podes ter muita coisa para lembrar.
- É que já me contaram muitas coisas de antigamente. E eu fico a rir de coisas antigas, Pi.
- As coisas antigas não têm muita graça de rir.
- Depende, Pi. Depende.”
(*)

Livros como este que, mal são terminados, apetece ler tudo outra vez.



(*) excertos do romance AvóDezanove e o segredo do Soviético, de Ondjaki.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Igreja



Casa de pardais bonitos, de formigas grandes
e casa de tajine.
Segura casa de paz.
Casa de campainha passarinho
e casa de futebol.
Casa de sustento, de alimento.
Casa de amor.

Templo de descanso,
de sombra, de brisa.
Templo de riso aberto
e templo de crianças.
Templo de som, de música;
de muitos e muitos idiomas.

Rios de água e de ‘cuca’ correm ali,
é casa e templo de repasto.
Templo de cumplicidades mil,
e de eternidades.

E a alma que outrora não tinha morada inscrita, encontrou nesse lar a sua.










P.S. Tirei aquela fotografia enquanto os irmãos dormiam.