sexta-feira, 14 de março de 2008

Das coisas que vou guardar e contar aos netos.

A família preparava-se para jantar, quando o tio D. telefona. Queria fazer-nos uma visita. Convidámo-lo para jantar connosco, já que nos reuniríamos ao resto da família daí a uma hora e meia, para celebrar o aniversário do tio Z. Ao jantar, os mais pequenos despacham-se depressa e deixam os mais crescidos a conversar sobre as novas que nos chegam por todos os lados. (e eu que outrora me despachava depressa, agora demoro-me e participo nas conversas. O tempo passa.)

Depois do jantar, os senhores presentes deleitavam-se com os jogos de basquetebol do mais pequeno de todos, o irmão, filho e sobrinho. E eis que o tio D. sugere que “agora era uma boa altura para ires buscar a guitarra.” Aceite a sugestão, vou buscar a dita cuja, contente por aprender mais umas coisas novas. Ao ver a guitarra, os olhos do tio D. sorriem. A guitarra não é o último modelo que saiu, nem nada que se pareça. É uma guitarra com muitos anos, que também emigrou para Portugal com a restante família; um dos poucos bens que conseguiu sobreviver a esse fogo que é a guerra. Sorriram os olhos e os lábios do tio D. ao retirá-la da sua capa, ao sentar-se com ela no sofá, ao afiná-la antes de começar a sua lição. “Já estou enferrujado” desculpou-se ele antes de começar, como se tais desculpas fossem necessárias. Sentado no sofá pequeno da direita, o tio e a sua guitarra (apoiada na posição clássica) fazem com que a tensão de um dia de escola e de trabalho, a tensão que agora é parte integrante dos dias que correm, se esvaeça docemente, pois as notas que ele toca na guitarra velhinha são como um sopro no centro da alma. E este sopro faz desvanecer o negativismo que nos tenta conduzir, faz desaparecer as preocupações que se instauraram em alguns dos corações presentes, e principalmente no do próprio tio D.. É um sopro ameno e saboroso, delicado e aprazível, é um aconchego para o espírito que chegou ao fim de um dia cansado.

Os dedos da mão esquerda do tio D. voam a uma velocidade incrível pelas cordas do braço da guitarra; a destreza adquirida em tantos anos de aprendizagem é notável e inesquecível (literalmente). Apesar de se dizer enferrujado, ao repetir a mesma sequência de notas duas vezes apenas, a sua capacidade de execução melhora e impressiona consideravelmente. Os dedos da mão direita, num total contraste com os da esquerda, movimentam-se mais lentamente, marcando, compassadamente, o tempo, este tempo. Dedilham as cordas que soam bonitas, e dedilham também os ouvidos dos presentes. Apesar de a televisão estar ligada, toda a gente a ignorou, toda a gente se debruçou sobre este tocador que invadiu a agitação mundana e a substituiu pela calmaria do som de uma guitarra. Os pequenos esqueceram-se dos jogos e das brincadeiras, a mãe esqueceu-se da cozinha para arrumar, o pai esqueceu-se da dificuldade da vida, o tio esqueceu-se do trabalho desgastante, eu esqueci-me de me preocupar com as adversidades que via nos olhos dos três últimos. Esquecemos tudo e ouvimos apenas a guitarra e a sua melodiosa voz, atentámos apenas para essas peças clássicas ou recentes que saíam da caixa do instrumento.

O tio D. culminou a sua intervenção com um sambinha bonito do Sr. Tom Jobim, Wave. Enquanto a mais pequena cantava algumas partes da letra, o sorriso do coração estabilizava e permanecia assim, impávido e sereno, contemplando o dom com o tio D. tinha sido abençoado. Um dom que ultimamente vinha sendo negligenciado por força das circunstâncias. E nesta altura, quando retomamos as conversas e os sorrisos se tornam em gargalhadas audíveis, porque estão todos felizes por poderem partilhar estes momentos uns com os outros, a minha mente viaja para outro plano, ou então mantém-se no mesmo registo em que estava: o da reflexão. Também eu sou riquíssima em bênçãos e quão poucas vezes me apercebo disso! Esta família, que preza momentos tão simples e singelos, estes quase-nada que se tornam em quase-tudo, é um refúgio para acalmar, onde a única coisa que importa é amar e demonstrá-lo. Estes presentes do Céu, momentos para guardar para o resto desta existência terrena, são bens inestimáveis que não esmorecem nem se desvanecem com o tempo. Se disser a alguém que “o meu tio D. foi jantar lá em casa e deu-nos um mini-concerto privado maravilhoso”, será que é perceptível nas minhas palavras que foi um momento marcante, apesar de tão discreto e, para alguns, banal? Aqueles minutos foram proporcionados pelo Pai, que sabe exactamente o que um coração precisa, quando ele precisa, como ele precisa. O Pai que sabe tudo e que nos mima a cada instante, ainda que não mereçamos. Foi uma lufada de ar fresco com uma duração de quinze minutos.
E estes pedacinhos de Céu vão ficar comigo até à eternidade, pois vou guardá-los e contá-los aos netos.

Um beijinho*

P.S. Em resposta à minha Leguminosa favorita, escrevi “contar aos netos” porque assim é perceptível que os levo comigo até à velhice. Com certeza que os partilharei também com os filhos (;

3 comentários:

Anónimo disse...

A Mirza foi de férias!?

Anónimo disse...

cousin how pretty :')!

***

Anónimo disse...

Valeu a pena esperar Amora...
Li e reli.Abosrvi cada palavra e consegui (quase) ouvir cada nota da guitarra que vos tem acompanhado.
O Pai enche-nos de mimos.Sabe, tal como tu dizes, quando o nosso coração está a precisar de descanso e sabe fazê-lo tão bem...

Um beijo e uma lágrima feliz*