quarta-feira, 5 de novembro de 2008

O 'querido' ISCTE... (2)

Adoro as janelas da biblioteca da minha faculdade. São, sem exagero, enormes, deixando toda a luz da manhã e da tarde entrarem sem quaisquer obstáculos. E são bonitas assim mesmo, sem pegas e sem cortinas, sem aparatos acessoriamente decorativos. Entre o estudo concentrado, e o devaneio que é vaguear pelos preâmbulos dos manuscritos que me rodeiam, paro para saborear, calma e vagarosamente, as nuvens branquinhas que pintam incoerentemente o céu lá de fora. Paro para ver melhor a maneira como a luz muda, como as árvores se deleitam com a chegada de horas mais fresquinhas, como os prédios correm os estores e acendem as luzes artificiais. Paro para ver esta Lisboa entardecer antes de anoitecer. E tudo isto com vista privilegiada, directamente das janelas do segundo andar da biblioteca da minha faculdade.

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Um dos amigos mais recentes que comigo partilha aulas, teorias duvidosas e músicas infinitas, recordou-me como é bom saborear, (gozar, como ele disse), os poemas do senhor Sérgio Godinho, tão maravilhosos de se ouvirem. Hoje, a letra que vos deixo faz tanto sentido que até arrepia. É gozá-la, e nada mais.


Segundo Andar, Direito – Sérgio Godinho

Ele vinte anos e ela dezoito, e há cinco dias sem trocarem palavra, lembrando as zangas que um só beijo curava…

E esta história começa no instante em que o homem empurra a porta pesada e entra no quarto onde a mulher está deitada, a dormir de um sono ligeiro. E no quarto, às cegas, o escuro abraça-o como que a um companheiro que se conhece pelo tocar e pelo o cheiro, e é o ruído que o chão faz que lhe traz o gosto ao quarto, depois de uma ruptura… Faz-lhe sentir que entre os dois algo ainda dura dos dias em que um beijo bastava. E agora, da cama, vem uma voz que diz, sussurrando:

“És tu?”

E a luz acende-se sobre um braço nu e a mulher pergunta:

“A que vens agora? É que não sei se reparaste na hora!... Deixa dormir quem quer dormir, vai-te embora. Amanhã tenho de ir trabalhar.”

Não fales, que o bebé ainda acorda. Não grites, que o vizinho ainda acorda; e não me olhes, que o amor ainda acorda. Deixa-o dormir, o nosso amor, um bocadinho mais… Deixa-o dormir, que viveu dias tão brutais.

E o homem, de pé, parece um rapazinho, a ver se compreende, e grita e diz que ele também não se vende, que quer a paz mas de outra maneira e nem que essa noite fosse a derradeira veio afirmar, quer ela queira ou não queira, que os dois ainda têm muito que aprender.

“Se temos?! – diz ela – mas o problema não é só de aprender! É saber a partir daí que fazer.”

E o homem diz:

“Que queres que eu responda? Não estamos no mesmo comprimento de onda? Tu a mandares-me esse sorriso à Gioconda e eu com ar de filme americano… Somos tão novos.” – diz o homem

E agora é a vez de a mulher se impacientar:

“Essa frase já começa a tresandar! É que não é só uma questão de idade… O amor não é o bilhete de identidade! É eu ou tu, seja quem for, ter vontade de mudar e deixar mudar.”

Não fales, que o bebé ainda acorda. Não grites, que o vizinho ainda acorda; e não me olhes, que o amor ainda acorda. Deixa-o dormir, o nosso amor, um bocadinho mais… Deixa-o dormir, que viveu dias tão brutais.

E assim se ouviu, pela noite fora, os dois amantes falar, e o que não vi só tive que imaginar… É preciso explicar que sou eu o vizinho e à noite vivo neste quarto sozinho, corpo cansado e cabeça em desalinho e o prédio inteiro nos meus ouvidos.

Veio a manhã e diziam:

“Telefona ao teu patrão, diz que hoje não vais, que viveste uns dias assim tão brutais e que precisas de convalescença, sei lá, inventa qualquer coisa, uma doença, mete um atestado ou pede licença, sem prazo nem vencimento, se preciso for…”

(Espero que não seja preciso, porque não sei como é que eles vão viver sem os dois salários…)

Vá fala, que o bebé está acordado. O vizinho deve estar já acordado e o amor, pronto, também está acordado… Mas tem cuidado, trata-o bem, muito bem, de mansinho, que ainda agora vai pisar outro caminho.

-*-

Um beijinho*


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