terça-feira, 15 de janeiro de 2008

Morrer a rir (ou morrer de rir)

Caro leitor e/ou cara leitora:

Há muito tempo que não escrevo, é bem certo. As razões são bem sabidas, não adianta mencioná-las. Porém, enquanto viajava num dos autocarros de regresso a casa, ao observar a chuva e os vidros embaciados deste, surgiu uma ideia para um texto, que escrevi assim que tive oportunidade. Aqui está ele, sujeito às criticas que o caro leitor e/ou a cara leitora deseje tecer acerca dele.

Retiro-me prontamente, pois marquei um encontro inadiável com os livros e cadernos.

Um beijinho*

-*-

Há muito tempo que não a ouvia rir. Tinha saudades desses momentos, esses picos emocionais, esses minutos em que o ar se enchia de gargalhadas audíveis. Há muito tempo que isso não acontecia, e eu queria muito que ela risse. Queria que ela respirasse fundo no fim do exercício e ficasse com uma expressão de contentamento estampada no rosto. Queria fazê-la rir com gosto, com vontade, para que ela pudesse recuperar um pouco daquele seu espírito saudável, literalmente saudável, porque agora não ria por estar doente; extremamente doente. Apesar disso a minha inocente teimosia insistiu dentro de mim, dizendo que bastaria um riso esboçado, bastaria mostrar alguns dos seus dentes direitos, para que eu me sentisse satisfeita e alegre por contemplar o seu ar feliz.

Assim, resoluta mas serena, aproximei-me da cama e comecei a relatar um dos nossos episódios favoritos, de há muito, muito tempo, de quando éramos novas e descuidadas, novas e sedentas de viver o que tínhamos pela frente; contei como se de uma história se tratasse, e ela já sorria abertamente de olhos fechados, só a recordar a lembrança. Aquele gesto entusiasmou-me tanto que deixei o meu discurso discorrer e continuei a relatar, a narrar aquele episódio de forma tão detalhada que o meu íntimo se orgulhou da minha memória. E eis que chego ao clímax da mesma: “Então, tu abriste a cortina e olhaste para mim, com aquele vestido pequeno demais e duas botas, a do pé direito no sitio correcto e no pé esquerdo, outra bota igual; também do pé direito.”
Pronto. Tinha conseguido. Ela explodiu a rir, ria muito, ria alto, gargalhava com vontade; a minha imagem (naquela figura) na sua mente, fê-la despertar, sair da prisão que era aquela doença e respirar mais ar de uma vez só, como se de um pássaro, que descobre a porta da gaiola aberta, se tratasse.

As gargalhadas dela não paravam, vieram as enfermeiras assistir, deleitadas como eu, à recuperação das cores que há tanto tempo ela não tinha. As enfermeiras sorriam e chamavam os médicos que a acompanhavam para verem também. Já se sabe, depois de se rir muito tosse-se um pouco, para recuperar o fôlego. E como já era previsto, ela tossicou, com a mão em frente da boca, bem-educada que era. Tossicou mais um pouco e naquela altura era suposto ela acalmar-se, suspirar de contentamento. Eu já estava tão satisfeita, tão deleitada a observar o maravilhoso pôr-do-sol que gingava preguiçosamente do lado de lá da janela, tão contente por vê-la rir novamente, que nem dei conta do seu ar extasiado, com uma incontrolável vontade de rir. Por querer tanto rir, continuou a tossir, porém ainda a sorrir. A tosse tornou-se mais violenta, tossia agora alto, ao invés de gargalhar como queria. Aquela tosse aflitiva alarmou-me, o que se estaria a passar? E ela tossia, mais e mais, incessantemente, perturbadoramente, incontrolavelmente. Agora estava espelhado no seu rosto que não conseguia parar de tossir.

Uma enfermeira saiu do seu posto de observação e dava-lhe instruções, “levante os braços!”, “erga a cabeça!”, “respire fundo!”, enquanto lhe aplicava palmadinhas nas costas. E ela, com uma tosse tão descontrolada que já se aproximava do vómito, já não podia respirar. Agarrou-se então ao peito e ajoelhou-se no chão (tinha escorregado da cama com tanta agitação); as enfermeiras rodeavam-na, queriam entubá-la, aplicar-lhe uma máscara de oxigénio, mas era impossível; estando tão curvada e aflita, ninguém conseguia auxiliá-la a colocar-se na posição horizontal, tão facilitadora nestas circunstâncias. Os médicos chamavam mais enfermeiras e tentavam ergue-la, colocá-la na cama, sem qualquer sucesso; ela deixava-se escorregar por entre os seus dedos. Agora fazia lembrar uma pessoa asmática, arfava, tentava respirar, tentava adquirir algum ar, acabar com aquele sufoco, pior que o sufoco doentio em que antes vivia. Arfava muito, intensa e demoradamente, arregalava os olhos como se o ar pudesse entrar directamente por ali e viajar até aos seus pulmões. Eu não sabia o que fazer, estava atordoada. Queria apenas fazê-la rir, só isso! Não queria que o seu riso provocasse um ataque destes. A culpa instalava-se, o remorso, a auto-agressão começou a fazer-se sentir quando enfim percebi que o seu último respirar estava para breve.

E depois, depois de tantos gritos, agitação, pedidos de ajuda, tentativas de ventilação frustradas, depois disso, depois de tudo!, ela suspirou longamente, desenhou um sorriso muito ténue no seu rosto, e morreu. Morreu. Morreu porque teimei em fazê-la rir. Teimei em fazê-la viver, reviver um pouco. Ao tentar fazê-la sentir o pulsar do seu peito, fiz também com que este parasse. Ela estava simplesmente a rir, só queria fazê-la rir! Mais nada! Não queria que ela tossisse, que ela se sentisse mal! Que ela morresse. Queria vê-la rir, fazê-la sentir.

Ela morreu a rir. E desse dia em diante eu vivo a chorar.



-*-
P.S. Tirei a fotografia num desses dias bons, de Verão. A modelo chama-se Nádia Mota.
P.P.S. Não adianta tentar estabelecer uma relação entre a fotografia de cada texto e o mesmo. É que não existe nenhuma.

2 comentários:

Anónimo disse...

Fazia tempo que não te visita.
As surpresas são muitas. Gostei.
Hoje, foi especialmente te felicitar.

FELIZ ANIVERSÁRIO! SÊ FELIZ!

Mil Beijos.

Jasmim

Anónimo disse...

Gostei.
Cativante, definitivamente.
Muito alegre de inicio, aos poucos e poucos conseguer ir preenchendo o "teu leitor" com um profundo sentimento de tristeza.

bjs jovem-que-escreve-bem,

Ana