domingo, 30 de agosto de 2009

Inalação

Guardei muito daquela terra, apropriei-me dela tanto quanto pude. Gravei com as órbitas e com as objectivas, escrevi em comprimento e com minúcia, ouvi o zunido que tantas línguas misturadas fazem soar, saboreei com a pele a temperatura do chão, da água, do ar que circunda tudo…Havia algo, porém, que temia muito perder entre uma e outra memória: o cheiro. Marrocos cheira a muitos cheiros temperados com muita intensidade. Às vezes tresanda e outras vezes agrada, mas nunca é subtil, nunca é suave; tem um cheiro que penetra inteiramente e não mais se ausenta das narinas. O nariz e o cérebro, porém, funcionam de um modo estranho. Se o primeiro ficar muito tempo sem sentir um dado odor, o segundo acaba por guardar apenas a ideia do que ele é; o tempo aliado à ausência faz perder a capacidade de cerrar os olhos e sentir o cheiro como se a sua presença imperasse. Eu receava que a minha mente montasse (apenas) uma concepção do cheiro, e receava muito.

Era o nosso último dia, aquele que foi reservado para a total exploração do mercado de Marraquexe (muito há para escrever sobre este lugar, por isso salto as descrições apetecíveis e dirijo-me ao que interessa). Os meus três companheiros de incursão ao mercado estavam inundados de sede, mas eu só me focava no chá marroquino que precisava de encontrar. Decidi então aventurar-me aleatoriamente, enquanto os meus companheiros repousavam o corpo do lado oposto àquele em que me encontrava. Entrei numa das tantas tendas, altas e firmes, cheias de especiarias e cheiros e materiais desconhecidos; dirigi-me ao vendedor, que não devia ter muitos mais anos que eu (os olhos astutos eram frescos), esperando que houvesse uma língua entre essas tantas em que nos pudéssemos entender. Havia.

E por isso entendemo-nos bem. Regateei o preço do chá como manda a regra, ele tentou impingir-me pós raros como é seu dever; declinei, cordial mas não muito firmemente, porque ele continuou a procurar mais alguma coisa que eu pudesse comprar. Era novo mas arguto, e com o seu melhor sorriso pegou naquilo que parecia uma rocha desconhecida e perguntou-me: “posso?”. Sem esperar pela resposta e sem usar de brusquidão, segurou o meu braço e explicou: “é uma pedra de jasmim, é perfume”, enquanto passava aquele sabonete rugoso pela minha pele, levemente. Ao terminar, desafiou-me a confirmar a veracidade das suas palavras; cheirei o meu braço e sorri (muito). Cheirava a uma parte de Marrocos.

Yassin, o vendedor do sorriso matreiro, mostrou-me outros perfumes cujo nome a minha memória deixou escapulir, e quanto mais ele mostrava mais eu descobria outros tantos cheiros que se misturavam e formavam o odor principal. No final, seleccionou as melhores quatro especialidades de perfume e fez-me um preço especialíssimo, por elas e pelo chá. Não procurei disfarçar o meu contentamento, estava a salvar em mim o cheiro de Marrocos. Aceitei a proposta e ele embrulhou cuidadosamente cada perfume, explicando-me que não devia misturá-los uns com os outros nem com outros produtos (como o chá). O jasmim foi o último a ser embrulhado, e Yassin acrescentou-lhe uma porção extra: “é uma prenda da minha parte”. (os homens marroquinos são de outra estirpe, mas acerca disso também há muito que escrever…)

Assim, cada vez que entro no quarto, fecho os olhos e respiro fundo… Nem um segundo e viajei para a tenda de Yassin; estou no imenso mercado de Marraquexe.

2 comentários:

Rebeca Pascoal disse...

o cheiro dos teus lenços ainda aqui paira :)

Anónimo disse...

Apesar de longo (sabes a minha opinião acerca disso) gostei muito deste texto. Não só porque nos encheste dessas palavras bonitas, mas porque descreveste tão bem. Compara-o a um quadro. =) Continua amora