segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Velhos hábitos.

Tenho o hábito de guardar e de datar. Uma folha de uma árvore, um rabisco intencional, um recado trocado numa aula, um talão de um jantar bonito, um bilhete de cinema, um laço de uma prenda, o próprio papel de embrulho, uma carta, um lembrete rabiscado ao sair de casa, tudo o que seja passível de reter, eu guardo e dato. Nas caixas e caixinhas que utilizo para o efeito, as memórias acumulam-se sem pressa, nem dó, nem piedade; aguardam, silenciosas, o dia em que me lembrarei de as ir espreitar.

Antes de enfrentar a barafunda que engoliu o meu quarto pela calada da noite, e motivada pelo piano que sussurrava o seu embalo no velho rádio, peguei na caixa da flor, a das memórias mais selectas. Estava embrulhada em pó, e não me preocupei em sacudi-lo; fiquei só a observar a sua beleza suja e rústica, e a gravar tudo como se de um filme se tratasse. O fecho, outrora fácil, fez-se difícil com a ajuda de alguma ferrugem, e precisou de um jeito extra para ser aberto. O conteúdo trouxe uma nostalgia atroz: entre embrulhos, bilhetes de Natal e de aniversário, flores secas e lacinhos da parfois, estava uma declaração de amor das mais bonitas que algum dia recebi. Foi escrita por uma amiga, numa altura de reconciliação. As feridas estavam saradas e as lágrimas secas; aquela carta foi o beijinho por cima do dói-dói que já havia passado; lembro-me de ter contido a alegria que se queria jorrar pelos olhos, de disfarçar com muitos gestos e risos à entrada do autocarro da visita de estudo, e de tagarelar todo o caminho com aquela com quem me reconciliara, que era a melhor amiga do meu coração.

Hoje não nos falamos. Apartou-se tudo: a cumplicidade, que foi morrendo, a confiança, que se foi desfazendo; tudo cozinhado com dureza de palavras e encruzilhadas de circunstâncias. Uma boa parte do que naquela carta está escrito será sempre verdade, e o resto voou.

O tempo, entretanto, vai roendo também as memórias físicas. Os talões e bilhetes vão ficando cada vez mais brancos, há embrulhos que já não me fazem recordar nada; todas essas coisas terão de ser lançadas fora, para dar espaço às memórias novas. Daquela que outrora foi minha cúmplice compincha, não eliminarei nada. Já que não pude guardar a sua amizade, não guardarei o rancor pelo seu término agreste. Guardarei apenas a memória dos dias em que ela existiu.

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